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Artigo - Notas sobre uma experiência de impossibilidade fotográfica e o fim da política

por polartÚltima modificação 09/12/2007 20:06

Reeditando algumas fotografias realizadas em 2007, me deparei com um conjunto de imagens dos protestos contra a visita ao Brasil do Presidente dos EUA, G.W. Bush. Como não gostei do resultado daquelas imagens acabei deixando-as de lado. Porém, recentemente, pensei que as razões que levaram à exclusão daquelas imagens poderiam servir de pretexto para um pequeno ensaio reflexivo que apresento a seguir:


***



Quinta-feira, 8 de março de 2007. Dirigo-me à Avenida Paulista, cidade de São Paulo, para fotografar os eventos do dia. Neste ano, diversos movimentos sociais se reuniram para celebrar o Dia Internacional da Mulher e realizar um grande protesto contra a presença de Bush Jr. na cidade. Deixo o metrô e saio na altura da Av. Brigadeiro Luís Antônio. Caminho em direção ao início da marcha, que partira há pouco da Praça Oswaldo Cruz, extremo sul da Avenida Paulista. O trâfego de automóveis já está interrompido no sentido bairro-centro. Sigo pelo meio da tranquila avenida enquanto preparo a câmera e visto o colete com o restante do equipamento.


Em tempos de ruas sem vozes, convertidas em vias de circulação permanente de máquinas, era uma certa surpresa encontrar tantas pessoas ali. Na medida em que me aproximo começo a escutar um ruído profundo e abafado que aos poucos vai se convertendo em uma massa sonora de múltiplas vozes, cortado apenas pelas palavras de ordem dos autofalantes que insistem em romper a horizontalidade sonora e visual dos caminhantes.


Antes de começar a fotografar penso que aquele poderia ser um bom dia imagético. Sigo caminhando em sentido contrário à marcha para atravessá-la por inteiro e depois permanecer misturado, contaminado por todos e todas. Tendo fotografado diversas manifestações sociais nesses últimos anos, tenho sentido uma profunda necessidade de buscar outras imagens nessas situações; imagens que disparem nossa imaginação na direção de histórias diversas. Por outro lado, sempre me deparo com algumas cenas que fotografo por um simples impulso de fazer um contínuo inventário de tudo que vejo nessas ocasiões. Talvez, um pouco do “mesmo” que possa revelar uma fagulha do inesperado. Porém, os “acontecimentos”, ou a erupção de uma clivagem inconteste nesses eventos me parece cada vez mais rara. Ou será que são meus olhos viciados que

se tornaram pouco sensíveis ao novo?


Com a câmera na mão inicio a jornada. As primeiras imagens não são animadoras. Ainda assim, insisto!




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Na frente da marcha surge a primeira faixa carregada por um grupo de jovens. Antes, porém, detenho-me ao lado de uma repórter da Rede Globo que fazia uma locução. Seu rosto fortemente maquinado contrastava com aquilo que vemos através da televisão. Atrás dela, um homem vestindo uma camiseta “Fora Bush” insistia em permanecer no campo de visão da câmera que a filmava, numa tentativa de inserir uma outra mensagem no registro televisivo. Sua camiseta, no entanto, está coberta por um grande “X” que torna a leitura prejudicada. Ele quer mostrar a camisa ou o seu próprio rosto? Seu olhar insolente, dirigido à câmera de televisão, não perturba a jornalista que nem se dá conta da sua presença. Um pouco atrás outra mulher observa a cena. A cor roxa e o azul marinho predominam no fundo de cena, misturando o asfalto, as calças jeans e as camisetas dos manifestantes. As primeiras faixam então se sucedem.




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Encontro alguns rostos conhecidos, cores, músicas e palavras. Um perfil feminino alaranjado pintado à esquerda, grita “Fora Bush” em amarelo sobre um fundo lilás. Vejo jovens carregando as mesmas bandeiras. Renovação ou criação? Persistências ou resistências? Para todos os efeitos, bato a foto e depois me pergunto: qual a diferença?


Como que a buscar um outro ponto de vista, aquele do olhar dos representantes que estão “acima”, saio da rua e escalo em um dos carros de som. Se na rua eu ainda podia perceber a singularidade dos rostos, lá de cima tudo começa a se fundir. Pessoas, faixas, movimentos, uma grande massa colorida que se contrapõem a uma imagem que permanece única. Presidente Bush é o único ser, atualizado por centenas de pessoas, faixas e cartazes, que está presente sem estar ali.



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Com exceção de alguns “buracos”, as faixas cobrem quase todo o quadro. De cima do carro de som é difícil saber quem está ali, os indivíduos estão escondidos sob suas próprias mensagens. As cores vermelha, preto e branco predominam, e na parte superior da imagem um grande balão flutua, buscando um espaço privilegiado para veicular o mesmo protesto de todos. Para que então o destaque?


Dias depois, vi uma imagem idêntica a esta publicada em uma revista. Fiquei na dúvida se alguém havia copiado minha fotografia na internet. Porém, me lembrei que eu não havia publicado nada deste evento. Olhei mais detidamente e percebi que haviam diferenças irrelevantes entre esta foto e aquela da revista. Pensei então que eu também poderia te-la feito, assim como este outro fotógrafo poderia ter realizado a “minha” fotografia. Tal “sincronia” me provocou algumas questões a cerca da autoria dessas imagens, bem como sobre as possibilidades fotográficas neste tipo de cobertura jornalística, uma vez que este tipo de evento já parece organizado tendo-se em mente alguns a produção de imagens midiáticas desejadas.


Já um pouco incomodado pela mesmice do evento, começei a pensar se eu deveria ir embora. Afinal, já tenho centenas de fotos deste tipo de situação e são todas muitos semelhantes. Começei a me indagar se não se tratava de uma problema de “pobreza” do real ou da falta de imaginação dos organizadores e manifestantes ali presentes. Algumas semanas depois enquanto discutia o assunto com uma amiga, ela me falou de um trecho de uma das cartas de J-M Rilke a um jovem poeta indeciso sobre sua vocação, onde ele argumentava que o escritor não deveria culpar a realidade pela sua falta de criatividade.


De toda maneira, naquele instante me deparei com uma dúvida: páro de fotografar e vou para casa; tento fazer um mergulho fotográfico num esforço criativo; ou simplesmente sigo fotografando no fluxo dos acontecimentos. Eliminei a primeira alternativa e segui no dilema entre as outras duas opções, esperando que o próprio dia me ajudasse a decidir. No meio dessas perturbações, tomado por um repentino distanciamento, me solidarizei com algumas pessoas que estavam nas janelas dos seus apartamentos observando a marcha.



4















No canto superior à esquerda uma senhora está atrás do silêncio dos vidros fechados, enquanto seu vizinho se debruça para fora observando à distância o que se passa lá embaixo. Os demais vizinhos, também solitários no meio do dia, olham cada qual à sua maneira. A senhora do meio à esquerda, acostumada à janela, apoia-se numa pequena almofada para seu conforto. Curioso que as mulheres estivessem de branco e os homens de vermelho! Será que essas pessoas se conhecem? O que será que elas estão sentindo e pensando enquanto observam o movimento que passa? Volto à rua.



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Havia algo de muito comum nesta marcha, como a celebração de um antigo ritual. Uma certa composição dos cenários; uma partilha dos espaços e dos corpos que estavam nos seus locais esperados de pertencimento; a organização de cada grupo; a constituição de pequenas massas homogêneas; os blocos e os carros de som. Todos devidamente no seu lugar, separados mas juntos. Nesta imagem, o canteiro central com suas aberturas para o subterrâneo da cidade, divide a avenida em dois campos opostos. De um lado a pista ocupada por caminhantes enquanto o outro lado permance livre para a circulação dos automóveis. Uma verdadeira ordem!

Até a polícia, como os demais manifestantes, seguiu ao pé da letra o script do evento. No momento em que a concentração de pessoas começou a ficar insuportável era previsível que o canteiro central seria ultrapassado por alguns manifestantes. Nada mais natural. Afinal, havia uma enorme aglomeração de pessoas. Portanto, seria inteligente (em termos da gestão do trânsito da cidade) que neste tipo de situação o fluxo dos automóveis, que na sua totalidade transportavam muito menos pessoas do que as que andavam na avenida naquele instante, pudesse ser alterado para dar prioridade a uma maior movimentação de pessoas pelas ruas.


Assim, os manifestantes que cruzaram para o outro lado da avenida e os policiais que tentavam mantê-los na faixa original passaram a trocar provocações. Os recursos mobilizados por cada um dos lados, entretanto, são evidentemente assimétricos. Ao mesmo tempo, enquanto alguns manifestantes tentavam conter os colegas mais exaltados, tanto a imprensa como a polícia assumiram, cada um à sua maneira, um papel mais ativo nos rumos dos acontecimentos.



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Nesta imagem um pequeno grupo de manifestantes aproveita-se do semáforo fechado para ocupar parte da pista. Um deles, de camiseta azul, segura um cartaz diante de um carro cercado por policiais, fotógrafos e manifestantes. Uma mulher tenta retirar o homem da frente do carro enquanto os fotógrafos ao redor buscam os melhores ângulos para registrar a confusão. Nervosismo de alguns, alegria de outros. Um dos fotógrafos à esquerda, logo acima dos policiais, sorri enquanto prepara a câmera. Do outro lado da avenida a marcha segue, enquanto deste lado uma longa fila de carros começa a se formar.


Alguns manifestantes começam a caminhar entre os carros que ficaram parados. Abaixo, um rapaz com o rosto coberto por uma máscara se protege com sua bandeira anarquista (preta e vermelha) da ameaça dos cassetetes policiais. Como não fotografar este tipo de situação?



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Estando ali no meio da confusão aquelas dúvidas anteriores são suprimidas pela urgência do conflito. Deixo de fotografar (no sentido da potência imagética) e me concentro no domínio do “registro”. Neste instante, tenho a impressão que desapareço e me transformo num ponto de convergência dos diversos fluxos que estão sendo mobilizados no local. A partir deste momento, sou arrastado pela correnteza dos acontecimentos e tanto meu olhar quanto a perspectiva da câmera assumem uma posição relativamente pré-definida. Seja porque o confronto se constitui através de um posicionamento dicotômico (e o mesmo ocorreu comigo) entre os participantes, criando massas relativamente homogêneas de ambos os lados (manifestantes versus policiais); ou porque a situação assume uma configuração onde quase todos os sentidos dos acontecimentos já estão pré-organizados. Assim, as rupturas, o inesperado, as novas composições e sentidos dos atos deixam de ser possíveis. Tanto os policiais, como os próprios manifestantes engajaram-se na produção de um conflito “organizado”.


Pura gestão do espaço físico e dos corpos. Nenhuma criação, nenhuma Política. O mesmo se dá no plano imagético. Fotografias que quando reduzidas à dimensão do “puro” registro perderam a sua riqueza polissêmica que poderia apontar para outros conhecimentos sobre o vivido. Assim, essas “imagens- registros” permanecem no campo do mapeamento e da dominação, da produção de identidades e conhecimentos voltados à gestão dos corpos e suas vontades.


Após alguns instantes de confusão, um agrupamento da política militar é mobilizad para realizar o “desbloqueio” da avenida. As pessoas se perguntavam “quem é que está tumultuando a situação?”, “quem é que está atrapalhando o trânsito?”. Mas enfim, pouco importa a “razão” dos fatos, todos já estão mobilizados na manutenção do espetáculo.




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Uma linha de policiais fechando a rua. Alguns conversam entre si. A situação não parece tão tensa. À sua frente dois jovens sentados como que a bloquear o caminho dos policiais. Eles estão com os rostos cobertos por camisetas, impedindo sua identificação. Na fotografia, os capacetes e escudos também ajudam a proteger a identidade dos policiais. Os pés com chinelos de um dos rapazes contrasta com as botas pretas de couro dos policiais. Corpos morenos praticamente desnudos diante de corpos cinzas completamente cobertos. Temos duas linhas, dois planos, dividos entre dois blocos relativamente homogêneos que não nos permitem acessar as singularidades daqueles que os compõem. Tanto os jovens quanto os policiais pausados em “harmonia” compõem um cenário que se completa e se amplifica diante de seus interlocutores (foto seguinte).





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Câmeras direcionadas para o mesmo lado. Cada fotógrafo buscando o melhor local de observação, mas todos produzindo imagens dentro de uma mesma perspectiva. Quem gera essas imagens? Quem fotografa? Podemos inclusive imaginar a imagem que estará estampada nas capas dos jornais no dia seguinte. O policial à esquerda já está um pouco descontente com a aglomeração que começa a se formar diante das câmeras. Enquanto a mão direita segura o cassetete a outra mão complemente seu olhar de “fazer o que, né?”.




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Aqui, o jovem que está de pé levanta a camiseta para exibir dois grandes ferimentos, possivelmente causados por balas de borracha disparadas pela polícia instantes antes. Seus companheiros gritam em protesto e carregam faixas e cartazes contra Bush. Logo em seguida à tomada desta foto, um policial passou discretamente entre os jovens e espalhou gás pimenta sobre eles para dispersar o grupo, contamindo todos as pessoas que estavam próximos.


Polícia, manifestantes, Bush, fotógrafos, todos igualmente partícipes na produção da cena. Esta mesma imagem poderia ter sido produzido em diversos países do mundo com pequenas nuanças. Não me parece que haja algo de novo nesta fotografia, nem no evento que está sendo registrado. Como que a participar de um ritual de atualização mitológica, tal manifestação e as imagens produzidas sobre ela parecem reforçar e reafirmar os locais originais de pertencimento de cada um, sem apontar para outras configurações possíveis. Ali, todos já são aquilo que esperamos; as identidades estão definidas e compartimentadas em grupos que se limitam a uma organização “mecânica” dentro do corpo social. É provável que existem diversos elementos que não estejamos sendo capazes de perceber. Entretanto, para mim, o mais importante é justamente este “mal-estar” que funciona como alimento para esta reflexão.


O mito se atualiza ainda mais profundamente quando fortalecemos e damos existência real a fantasmas que deveríamos exorcizar. Ao colocar o Presidente Bush como centro dos protestos vivemos mais uma vez o mito do soberano, como se houvesse um governante capaz de decidir e deliberar autonomamente sobre o mundo. Não reconhecemos que se trata de um fantasta que se apresenta como a imagem unitária de um processo que não tem corpo, território ou agentes pré-definidos. Imagem esta que conforma um certo desejo de totalidade e unidade. Vivemos mais uma vez, o mito da representação, da delegação no poder a outros que decidirão por nós. Atualizamos, sob novas formas, um contra-discurso da Verdade e da Justiça em oposição aos discursos do Império do Mal, representados aqui pela imagem do Bush. Inverte-se os pólos, mas se afirmam as mesmas estruturas de produção de sistemas unitários de identificação.


Acredita-se que o embate político ocorre ali nas ruas, na marcha, no confronto com os policiais, na fronteira entre as forças opostas que colidem naquele tempo-espaço “real” ou mesmo através das imagens difundidas nos meios de comunicação. Insiste-se em atuar naquele conflito (presente-concreto-real) e não se percebe que o máximo que pode ser obtido naquele “lugar” é uma outra atualização daquilo que já não importa, daquilo que já não influi nas decisões relevantes. “Deixem que se batam, que ressuscitem (fusão carne e espírito) e se entretenham com o Leviatã!”. Ali, a Política não acontece!



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Uma certa frustração com as imagens produzidas naquele dia, inspirou analogias entre o processo fotográfico e as configurações contemporâneas do conflito social. Com a câmera, podemos mudar o ponto do vista sobre o “objeto” fotografado, mas dificilmente podemos escapar dos princípios óticos e geométricos que constituem o aparelho fotográfico. Os momentos em que somos capazes de nos apropriar dos diversos elementos que formam o processo fotográfico, para tensioná-los e levá-los para além dos limites previamente estabelecidos é quando conseguimos abrir um novo campo de significações através da linguagem fotográfica. É neste momento que adentramos efetivamente a produção criativa que caminha junto à imaginação.


Talvez, essa “impossibilidade” fotográfica vivenciada possa estar relacionada à própria constituição de uma “olhar” que se formou em estreita relação com o pensamento e práticas políticas contemporâneos. Assim, a percepção da inexistência da Política em tais experiências se evidencia para mim na própria realização destas fotografias. Se pensamos a Política como um acontecimento de criação, de definição dos próprios termos e sujeitos do debate público; se tomamos a Política como o processo de definição dos critérios de pertencimento e partilha dentro do todo social, talvez possamos afirmar que nenhuma invenção ou ato Político ocorreu naquele dia na Avenida Paulista. Da mesma forma, não por relação de causa-efeito mas por simples analogia, pode-se dizer que essas fotografias permaneceram no âmbito do registro factual, sem adentrar o campo da criação poética.




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Para concluir, voltemos ao Presidente Bush, ou ao Diabo, ou a Hitler, todos curiosamente fundidos num ser que carrega por baixo o rosto de Che Guevara. Estranhas fusões! E assim, persistimos em nossos ritos, com os mesmo demônios, os mesmos deuses e o mesmo paraíso, que espera-se um dia chegará! Tudo dando a impressão de que no âmbito das lutas sociais contemporâneas e do próprio imaginário de “resistência”, ambos parecem padecer de uma triste “pobreza da imaginação”.




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